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Que lugar temos dado ao que no corpo pulsa?

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 14 de abr. de 2022
  • 3 min de leitura


O corpo existe e pode ser pego.

É suficientemente opaco para que se possa vê-lo.

Se ficar olhando anos você pode ver crescer o cabelo.

O corpo existe porque foi feito.


Arnaldo Antunes



Somos um corpo!


Um corpo que, desde que chega ao mundo, é investido de uma série de práticas que procuram dar nome e organização às sensações caóticas que nos invadem. Fome, dor, frio, calor, desamparo, luzes nos tomam de assalto. É com o corpo que faremos nossa primeira leitura do mundo, totalmente sensorial.


imagem: Paul Jung



Esse corpo-ovo será recebido e nutrido pelo colo coletivo que o envolve, uma superfície que o acomoda e que se desacomoda para recebê-lo. Temos então um corpo de potência que se expande, na medida em que experimenta movimentar-se em determinada superfície, fértil ou estéril, mais ou menos facilitadora para o bom andamento de seus processos.


É à medida em que nos experimentamos que descobrimos o que podemos - e até onde podemos.


Um corpo-semente que se expande, envereda e se arrisca para além de seu território. Tanto seu ponto de partida quanto a linha de chegada, nos escapam. Um corpo que se expande, o faz pelo meio, movido pela possibilidade de ir além.


É aí que se inicia a tensão entre a demarcação de limites já dados e a criação de limiares próprios que pretendem superá-los. Para descobrir até onde pode, um corpo precisa testar-se. Caminhar, saltar e cair. Levantar, correr, esperar... Para um corpo que se experimenta é preciso sustentar os processos.


Na semana em que corpos adolescentes sofreram um episódio coletivo de ansiedade, com sintomas de falta de ar, choro, tristeza, aceleração cardíaca e medo da escola é imprescindível que nos perguntemos: que tipo de superfície temos oferecido às vidas que ao invés de se expandir, murcham e se decompõem?


Da sociedade disciplinar à sociedade do desempenho, o tempo dos processos nos tem sido usurpado. Enquanto a primeira o formata ao eleger marcos e instaurar estágios lineares de produção, criando protocolos de seriação válidos para todos os casos, a segunda se vale de um misto de mecanismos de controle e visibilidade que faz dos processos de expansão um novo tipo de espetáculo a ser exibido enquanto acontece, tal como um reality show.


Um corpo que precisa performar enquanto se experimenta, passa a reconhecer como condição de existência e sentido o olhar e a aprovação do outro. Produzimos, então, uma inversão completa da noção da experiência, na medida em que deslocamos os resultados esperados - sempre um efeito - ao lugar das causas.


O resultado real e palpável dessa inversão?


Existências performáticas e respondentes às demandas que lhe são endereçadas, ou, numa outra ponta, tristes, dormentes e anestesiadas pela impossibilidade de viver os processos a seu tempo. Em um e em outro caso, produzimos corpos apartados do próprio desejo e desconectados daquilo que podem.


Na sociedade em que se sobrepõem mecanismos disciplinares, de controle e de desempenho, fica claro que invertemos a ordem das efetuações, confinando as existências a um lugar de pura adequação social.


E então somos surpreendidos por corpos que, ao adoecer, dizem não. Porque onde existe mecanismo de controle, somos capazes de inventar múltiplas possibilidade de escapar, ainda que não incólumes...


A situação nos convoca a questionar que lugar temos dado ao que no corpo pulsa ou precisa se expandir? Ou, em outros termos, se ainda somos capazes de gerar corpos que pulsam ou se expandem quando os nossos próprios padecem dos mesmos sintomas.



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© 2022 Marta Picchioni

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