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Revolução: brincar!

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 10 de jun. de 2021
  • 5 min de leitura

No campo da educação, temos assistido entristecidos ao espraiamento da lógica de captura e produção de meta narrativas que têm dominado todo o campo social. A grosso modo, trata-se da expansão da ideia de que o mundo é uma grande mercadoria organizada e gerenciada por meio de nichos que devem atender à grande máquina da produtividade dominante.


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Tal qual ocorre às empresas, a educação tem sido canibalizada, em todos os seus segmentos, por nomenclaturas e estratégias que remetem a objetivos inequívocos, muito semelhantes aos utilizados para nos convencer a adquirir determinado produto.


Mundo maker, gamificação, metodologias ativas, habilidades sócio emocionais, técnicas e procedimentos para tornar visíveis os processos de aprendizagem são alguns dos nomes de impacto que se tornam slogans de um fazer educativo que, em tese, se pretende à altura de seu tempo.


No entanto, se olharmos para tudo isso com mais atenção veremos que tais investidas já nascem capturadas pelo macro olho do poder, que a tudo identifica, documenta, embala e capitaliza. São, portanto, novas maneiras de padronizar processos, valendo-se do discurso das singularidades para produzir o mesmo.


Estudantes-protagonistas esbarram na ideia de se constituírem como empreendedores de si, de modo que, desde o início, devem perseguir certa listagem de competências e habilidades pré-postas e mensuráveis por agentes que fazem do futuro um lugar colonizado por seu imaginário e expectativas.


O valor do ser, aqui, está na capacidade de se adaptar ao instituído e de manter viva a engrenagem já carcomida por pontos de ferrugem. Tais narrativas prometem que, ao aderir às metas pré-estabelecidas, os estudantes encontrariam, ao final do trajeto, as boas recompensas, balizadas pela ideia de uma vida bem sucedida, um bom emprego e o reconhecimento de seus pares.


Trata-se de um futuro desde cedo esquadrinhado e acossado pelos medos e imperativos reproduzidos no tempo presente, que serve exclusivamente a manutenção do status quo. Neste futuro projetado, as singularidades em processo devem se enquadrar nas estreitas formas disponíveis - uma distorção se pensarmos que o tempo futuro é justamente aquele que nos escapa e que por isso mesmo pode ser inventado a partir da experiência e do encontro com o desconhecido.


O futuro produzido em larga escala e como reposição de peças para manutenção da engrenagem social é herança da Revolução Industrial, ocorrida entre os séculos 18 e 19, e que, desde então, recai sobre a escola. De lá pra cá, ainda que haja uma e outra tentativa de escapar ao modo hegemônico de produção, observamos que as “novidades da vez” sempre chegam ao chão da escola embaladas com ares de um inovador fazer pedagógico ao qual os agentes escolares devem aderir.


Pouco se investe na escola como um lugar de experimentação e produção de pensamento, onde professores e estudantes, em seus encontros diários, entre si e com o mundo, proporiam novos formatos e linguagens para dar vazão àquilo que os anima. Como parte da sociedade de consumo, também a escola deseja e consome novidades pedagógicas terceirizadas, esquecendo-se que ela própria é o celeiro e o laboratório por excelência para produzi-las, e não o contrário.

Viver em um mundo em crise parece ser o mote para a produção do desejo de novos modos de fazer, mas ainda não o suficiente para que assumamos os riscos que a busca por novos caminhos exige de todos nós.


Novos caminhos não vêm prontos nem tampouco embrulhados em narrativas elaboradas por terceiros. Eles pedem escuta, tempo de pesquisa, composições, colaboração, tentativa e erro. É neste sentido que, ao invés de esperar por resoluções miraculosas, sempre vindas de cima e de fora, como narrativas transcendentes de salvação, seria interessante investir no caminho inverso: observar o pequeno, o cotidiano, o que move e faz brilhar os olhos daqueles que estão lá e fazem da escola o seu plano de encontros e invenções.


É assim que proponho uma espécie de revolução, mas uma que seja menor, micropolítica e inventiva. Uma que se proponha a investigar o que se passa aos nossos corpos quando nos dedicamos com inteireza aos fazeres escolares como superfície de encontros. Trata-se da revolução brincar!


A brincadeira, como linguagem fundamental da infância, também tem sido negligenciada e capturada pelas expectativas dos adultos em relação aos seus usos e utilidades. Assim, como tudo mais, seguem a cartilha do dever ser.


Brinca-se para aprender, para desenvolver habilidades sócio emocionais, para respeitar regras, para lidar com as frustrações. Brinca-se para gastar energias, para desenvolver destreza motora, para prevenir o sobrepeso, para descansar por um instante. Brinca-se sempre tendo em vista uma finalidade específica que não o próprio brincar - e de preferência brinca-se, desde que não suje a roupa.


Em oposição a este brincar, orientado à intencionalidade dos adultos e dos bons resultados, insistimos em outro, um que é apenas e tão somente, uma afirmação dos modos da infância. Aqui, brincar é um modo de se compor com a vida enquanto tal: se choveu, brincamos de pular em poças d’água, se esquentou, brincamos de correr ao ar livre, se diante de muitas caixas, brincamos de esconder, empilhar e de fazer cabana, se diante de um tanque de areia, brincamos de cavar, de fazer castelos, de construir bolos e fazer docinhos.


Brincar é, nessa medida, a revolução do estar de corpo presente neste tempo que nos atravessa e, a partir dele, inventar mundos com os elementos disponíveis. O futuro se apresenta como tempo de criação e invenção, nada que se pretenda como meio para qualquer outra finalidade mais nobre.


Para aquele que brinca, o mundo se afasta da lógica do dever para se apresentar como plano de imanência, avizinhando-se à lógica do devir. Cria-se linhas de composição onde novas e inusitadas trajetórias são inventadas e poderemos ser de tudo: exploradores, astronautas, jardineiros, cuidadores de formigas, amigos do vento, minhocas, cavalos aventureiros, e nem o céu é o limite.


Eis a máxima revolução dos corpos e da linguagem: inventar ali, onde nada existia, demorar-se onde nenhum futuro de sucesso se anuncia. Este é o combate necessário: uma escola que ao invés de gamificar, saiba dar o devido valor aos brincares de suas crianças, que ao invés de aderir a metodologias de mercado que se abatem sobre si, possam trilhar percursos próprios e experimentais, confiando em seus fazeres e em sua capacidade de inventar.


Tal revolução é singular, imperceptível e acontece sem alarde. Ela se dá bem ali, num canto de esquina onde os fazeres correm livres dos olhares controladores e dos mecanismos de captura que aprendemos a operar. Ela se dá nos intervalos, nas frestas de tempo entre uma aula e outra, uma entrega e outra, onde os corpos afirmam-se em toda sua potência de inventar e acontecer.


Uma escola que de fato se comprometa com a infância, com o futuro e com a necessidade de mu_dança precisa investir em tempos e espaços onde apenas brincar seja o suficiente. Ao que tudo indica, é este o ato revolucionário diante da vontade de pertencer e reproduzir narrativas de garantia em um mundo que se apresenta mutante.


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