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Setembro amarelo e nossas mortes cotidianas

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 20 de set. de 2022
  • 3 min de leitura

Setembro!

Mês em que o circunspecto inverno cede lugar às cores e flores da primavera. É quando Perséfone deixa o reino de Hades e emerge à superfície, ao encontro da mãe, Deméter, que inundada de alegria, faz tudo brotar outra vez.


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imagem: Van Gogh


O mês de todas as flores, é também aquele que se convencionou chamar de amarelo, tornando-o ocasião para falarmos sobre a prevenção do suicídio. O assunto é complexo e cheio de nuances. Embora o ato de pôr fim à própria vida não se ajuste à sazonalidade das campanhas preventivas, o mês em que a vida renasce tornou-se propício para trazer à pauta o tema que, de um ou outro modo, nos implica.


Desde pequenos aprendemos - e portanto criamos consciência - que não se deve atentar contra o próprio corpo. Já na primeira infância, quando uma criança insiste em pôr os dedos na tomada ou a ultrapassar certos limites físicos - mesmo alertada de que tal gesto poderá machucá-la - a consciência sobre riscos e limites está sendo produzida.


Tratar a prevenção do suicídio pelo viés da conscientização - nem que seja a dos que ficam - parece pouco. A perspectiva de desistir do jogo por conta própria e precocemente continua a existir mesmo que tenhamos consciência dos riscos envolvidos. Vale lembrar que viver implica justamente em correr certos riscos, o que talvez demande de nós muito mais um investimento em favor de uma vida interessante - o bom jogo - do que uma vida movida pelo medo do abismo.


É Antonin Artaud quem levanta essa lebre. O poeta, internado num hospital psiquiátrico ao ser considerado delirante pelas pessoas ao redor, se vale dessa experiência para pensar a loucura a partir de sua própria trajetória e a de Van Gogh. Ao criar o termo suicidado pela sociedade - título de seu livro - Artaud propõe que pensemos o suicídio como produção de toda uma rede rizomática de relações.


Assim, ainda que cada história seja única e cada ato singular, é preciso fazer uso de lentes abrangentes o suficiente para entender em que medida nossas redes têm, ou não, dado sustentação às quedas, tropeços e percalços inerentes à existência.


Que espaço de convívio e escuta temos cultivado em nossas relações?

Estamos dispostos a promover e sustentar conversas difíceis?

Temos apostado na criação de recursos linguísticos e expressivos para dar passagem ao que sentimos como mal-estar?

Que uso temos feito de nossas dores e prazeres?

Temos acolhido os corpos e suas necessidades para além do script já dado?

Que lugares de vida temos criado, para além do dever ser?

Temos criado gosto pela vida como superfície de variação?


A breve lista de perguntas nos dá pistas sobre a importância de ficar com o problema, maturando-o o tempo que for preciso, até que sejamos capazes de deslocar o olhar, do foco preventivo ao investimento em uma vida interessante. Aqui, a questão do suicídio já não se reduz a seu acontecimento último, mas fala dos recursos disponíveis para lidarmos com nossas mortes cotidianas.


A vida/morte, como ciclo de passagem de um estado a outro, é algo não apenas necessário, como desejável. A questão é quando nos confundimos e passamos a concebê-la como condição de libertação da dor, atentando contra a própria vida ao invés de nos desvencilhar daquilo que nos envenena.


Como propõe Artaud, trata-se de combater as relações que nos enfraquecem todos os dias, contando para isso com nossa própria permissão. Desinvestir tais práticas, ao invés de dar a vida em sacrifício, é a tarefa.


Como bem sabem os deuses, há o inverno, a primavera, e toda uma variação nas manifestações da vida entre eles. O bom combate propõe que caminhemos em direção à construção de recursos que nos permitam trocar de pele quantas vezes for preciso. Assim, aprenderemos a criar bons destinos às nossas mortes cotidianas, que nada mais são do a dupla face da própria vida.






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© 2022 Marta Picchioni

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