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Sob o Ataque dos cães

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 24 de mar. de 2022
  • 2 min de leitura

Diz o dito popular que cão que ladra não morde. Talvez esta seja uma sabedoria acertada para afirmar a diferença de efeitos entre ditos e não ditos, nos ajudando a voltar a atenção aos ataques não explícitos.



Se reconhecemos um ato de violência por seu grau barulho e ferocidade, encontraremos algo semelhante na presença incômoda de Phil, o típico machão do velho oeste, que não toma banho e se recusa à convivência amistosa com os demais. Intuímos de largada que o que o sustenta é uma alma ferida e, como diz o ditado, ele esbraveja e vocifera, mas só afeta quem se deixa afetar, ou, em outros termos, quem já sofre de suas próprias mazelas.


O ataque ao qual se refere o título, logo percebemos, é de outra natureza. Um fazer orquestrado sem pressa, cozido em fogo brando e permeado pela sutileza quase imperceptível que atravessa todo o filme, materializando-se pelo olhar de Jane Campion, a diretora, e pelas mãos sensíveis do jovem Peter.


Diante das espécies dominantes do velho oeste, é a figura frágil do jovem, a personagem capaz dos gestos mais firmes e resolutos; desde a produção de delicadas flores de papel que enfeitam as mesas do restaurante onde trabalha sua mãe, até a dissecação meticulosa que empreende no corpo morto de um coelho, quando, mais tarde, já é um estudante de medicina.


Enquanto aguardamos pelos rosnados característicos do que seria esperado em um ataque de cães, pouco percebemos que sob silêncios e pausas e onde nada parecia acontecer, ele já está sendo orquestrado bem debaixo de nossos narizes.


Na sutileza dessa linha narrativa, nenhuma costura nos é dada de antemão, nenhuma conclusão entregue de bandeja. Ouvir os silêncios e tecer sentidos a partir das entrelinhas é o convite lançado a nós, espectadores, algo que a personagem de Peter faz tão bem.


Se o acompanharmos, veremos que em meio a sua presença discreta e performática, ele colhe pistas, lança ideias no ar, costura ações imperceptíveis, de modo a entrelaçar as vidas a seu redor como quem tece uma rede, uma corda.


Ah, a corda…


Objeto periférico e ao mesmo tempo central à narrativa. Ela, que esteve desde sempre lá: no pescoço morto do pai, no presente de iniciação tecido por Phil e, por fim, no fio invisível que conecta Peter à sua mãe.


De vazio em vazio, pouco há para se dizer sobre uma narrativa onde tudo se passa sob. É preciso, então, ir um pouco mais fundo e ver além, sem medo das performances do autoengano, onde nada é o que parece, e a suposta masculinidade tóxica vira poeira em meio a sutileza dos gestos incisivos.


Um filme simplesmente imperdível!


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© 2022 Marta Picchioni

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