Sobre peles e superfícies de inscrição: o que pode a escrita?
- Marta Picchioni
- 3 de jun. de 2021
- 5 min de leitura
Atualizado: 5 de jun. de 2021
Desde cedo, incentivamos nossas crianças a tomar gosto pela leitura. Dizemos que ler é um modo de abrir as asas do pensamento e da imaginação, uma possibilidade de viajar por mundos distantes, de nos tornar outros e, assim, habitarmos novas peles.

O mesmo com a escrita. Junto às práticas de letramento, a alfabetização acontece a partir do nome próprio, unidade que nos confere identidade e fortalece em nós a ideia de pertencimento. Na consolidação desses processos, aprendemos a confiar nas palavras escritas, atribuindo-lhes um estatuto intrínseco de verdade, já que, por serem grafias impressas, transmitem uma sensação de segurança e estabilidade, como se por meio de suas marcas, soubéssemos sempre para onde voltar.
Leitura e escrita atravessam nossos modos de nos relacionar com o mundo, na medida em que depositamos nessas práticas um certo status de representação. Assim, é como se o mundo escrito representasse o real, de modo que investimos muitas energias nos processos de registro e documentação. A cada experimentação, um ou mais registros correlatos, a cada pensar, um ou mais documento. É como se o pensado e o vivido só adquirissem valor quando e enquanto escritos.
Eis que me deparo com A Queda do Céu, um livro, como não podia deixar de ser. Escrito por Davi Kopenawa, xamã yanomami e por Bruce Albert, antropólogo francês, o livro nos faz pensar, entre tantas perspectivas, a questão da inscrição. Qual a distância entre o escrito e o inscrito em nós? À experiência vivida, basta inscrevê-la no corpo ou é preciso marcá-la também em papel? E, ainda, considerando nossa cultura grafocêntrica, pode o papel ser vivido como extensão do próprio corpo?
Logo fica claro que A queda do Céu é um livro-máquina, a materialização de uma máquina de guerra. Nesse sentido, a parceria entre o yanomami e o francês é estratégica: faz voar, por meio das histórias inscritas no corpo - e agora em pele de papel - as riquezas de uma cultura originária para olhos que veem e escutam por meio das letras.
Kopenawa nos provoca. Em nós, talvez o que vibre seja, antes, o que se inscreve em pele de papel. Trata-se de uma provocação cheia de astúcia: foi preciso um antropólogo francês para que pudéssemos finalmente nos aproximar e legitimar os saberes yanomami, por meio de um livro: objeto-fetiche da cultura ocidental.
As diferenças que estabelecemos entre o vivido e o registrado, o dito e o escrito, começam na relação que criamos com o nome. Em nossa cultura, um nome próprio é gestado antes mesmo que aquele novo ser venha a se fazer presença no mundo. Será este nome que nos acompanhará ao longo da vida, na construção de nossas identidades, no processo de inscrição na cultura escrita, no modo como nos chamam e se dirigem à nossa pessoa como uma, diferente de todas as outras.
Em oposição, as palavras escritas não são centrais na cultura yanomami. Seus principais ensinamentos são transmitidos por meio de ações referentes às práticas de vida: modos de caçar, de construir moradias e cozinhar, modos de se relacionar com outras entidades viventes, com os ancestrais, com o grupo. Tudo aquilo que importa fica gravado no corpo, como experiência viva, de modo que as peles de papel, que em nossa cultura são extensões de nós mesmos, soam curiosas.
O mesmo com o nome próprio que é escolhido pelo xamã em uma ocasião especial, um ritual. O nome serve para se referir à determinada pessoa na ocasião de sua ausência. Chamá-la ou identificá-la pelo nome em sua presença é considerado uma experiência provocativa e até ofensiva. Não à toa, as crianças yanomami não recebem um nome ao nascer. É preciso que cresçam, que expressem gostos e afinidades para só então receberem um nome apropriado - normalmente, uma revelação feita pelos xapiri - os espíritos - aos xamãs daquele grupo.
No caso, Davi foi um nome dado por forasteiros: brancos que ao louvarem seu próprio deus, quiseram estender a graça ao pequeno yanomami. Um nome-presente vindo de fora, era também “um nome claro, que não se pode maltratar”. O pequeno yanomami recebeu a oferenda, não sem nos alertar que naquela cultura, é importante que os nomes “fiquem longe de nós”. Assim, embora existam, são usados com prudência e moderação.
Kopenawa, seu segundo nome, tem uma história bem diferente: veio a ele só muito mais tarde, quando vivia uma situação de extremo conflito com os garimpeiros que invadiam a terra yanomami. Foi nesta ocasião que os xapiri vieram em seu auxílio, mostrando-lhe a força do nome durante um ritual xamânico. Kopenawa tinha a força dos espíritos vespa, exatamente o que precisava para ter a coragem e a bravura necessárias para combater os invasores. Nome de Guerra, portanto.
Davi Kopenawa: misto de nome cristão e yanomami traduz bem uma existência de fronteira, entre um e outro modo de vida, uma e outra influência e a tarefa de fazer espalhar as sementes, mundo afora, dos saberes de seu povo.
No contato com os brancos, ele apreende, desde cedo, sobre nossa crença ilimitada no que dizem as peles de papel. Seja por meio da bíblia, utilizada pelos grupos evangelizadores, ou por observar nossa fixação em registros, documentos, cartórios e contratos, o fato é que precisamos de referências, fontes e materiais de consulta para outorgar a um conceito ou narrativa seu lugar de autenticidade.
Livres da forma fixa da palavra escrita, o pensamento yanomami voa solto em todas as direções, valendo-se do uso de palavras cantadas, imagens e sons para compor as muitas possibilidades de seu pensamento-rizoma. Esses vêm de muitos lugares: das bocas, dos sonhos, das mensagens e danças transmitidas pelos xapiri durante os rituais com o pó de yãkoana, das alianças estabelecidas com os seres viventes, todos em coexistência.
Há uma sobreposição de pensares e de mundos, onde as palavras inscrevem-se nas carnes e fazem parte daquilo que acontece. Os yanomami não precisam de palavras impressas para acreditar no valor de um saber, eles as apreendem por todo corpo, como palavras-alma, que se traduzem em modos de vida - por isso não necessitam lavrá-las em cartório. Para nós, o oposto: de nada vale aquilo que é dito se não estiver documentado e autenticado: precisamos de nomes oficiais e materialidades que nos permitam comprovar o que dizemos.
Os anos de convivência com os brancos trouxeram muitos aprendizados. Aprendeu, por exemplo, que na lida com os forasteiros, é preciso registrar. As terras precisam ser homologadas pela União, do contrário podem ser tomadas a qualquer tempo, é preciso portar um documento de posse e, mesmo assim, as fronteiras serão cruzadas, invadidas, saqueadas. O homem branco é pouco confiável e é preciso cultivar um estado de constante vigília para fazer valer o acordado.
Davi Kopenawa logo percebe que para entrar em campo de combate com os brancos é preciso fazer uso de suas maquinarias. Nesse sentido, a aliança que estabelece com Bruce Albert é estratégica: além da amizade construída após longas quatro décadas de convivência, será ele o responsável por ajudá-lo a inscrever em papel o pensamento yanomami: só assim os brancos serão capazes de abrir ouvidos e olhos, deixando-se afetar por seu modo singular de ver e viver no mundo, sua cosmologia.
É preciso jogar o jogo dos napë, o inimigo, para estar à altura do combate: as palavras impressas como máquina de guerra e em nome, não só da vida, mas de certo modo de vida. O que Davi Kopenawa quer vai além de preservar a vida de seu povo, mas de legitimá-los enquanto alteridade.
Foi na forma d’A queda do céu que a estratégia se materializou. Por meio de palavras inscritas, fomos dados a conhecer e a legitimar sua cosmologia. Torcemos por ele e seu povo, nos admiramos com a riqueza de seus saberes, costumes e modos de conceber o mundo, nos espantamos sobre o quanto demoramos a travar contato com a perspectiva de um povo que divide conosco o território nacional. E, ainda assim, resta a pergunta: será que saber sobre e valorizar seu modo de vida se traduzirá em garantias de preservação ao longo do tempo?
É aqui que decidiremos qual o valor da palavra escrita e inscrita para nós, povo da mercadoria: pura retórica rentável e cambiável como tudo o mais, ou de fato, um valor a ser defendido em ato.
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