Torna-te criança!
- Marta Picchioni
- 1 de abr. de 2021
- 5 min de leitura
Tornar-se criança, ao contrário do que poderíamos imaginar, não é uma condição dada, mas, antes de tudo, uma conquista. Assim nos propõe Nietzsche, pela boca de seu anti profeta, Zaratustra, quando este nos fala sobre as três transformações do espírito.

Para um e outro, não basta nascermos crianças para que nos tornemos uma: é necessário uma longa jornada de desconstrução de uma certa forma de humanidade em nós, para que enfim nos transmutemos naquilo que, de todo modo, já somos em germe: nada menos que uma potência de criar realidades.
Devir criança, eis a missão! Esta, no entanto, se distancia da evocação de uma imagem fixa de criança, a qual, supostamente retornaríamos ao fim da vida, e se aproxima à conquista de uma certa porosidade ao que está aí, ao acontecimento. Trata-se de investir no cultivo das frestas e das aberturas que permitem a chegada do novo e de uma vida em movimento que se afirma em nós.
Ainda que esta vida aconteça sempre pelo meio, por aquilo que com ela se passa e pelo que em nós atravessa, evoco a artificialidade de um certo começo, quando Zaratustra, então com cerca de trinta anos e após passar um longo período de isolamento, habitando o topo de uma montanha, na companhia do Sol, de sua águia e de sua serpente, extravasa-se da companhia de si mesmo e resolve descer à cidade outra vez, para falar à humanidade: "Vede, eu vos ensino o super-homem!"
Seus ensinamentos são fruto do silêncio e da distância, aliados em fazê-lo enxergar as artimanhas tão bem arquitetadas por nós, para sustentar proposições, ora enganosas, ora parciais, de modos de vida orientados às formas transcendentes de existir, que buscam a redenção sempre fora, sempre além, sempre acima do tempo presente. Zaratustra, no entanto, não desce na condição de profeta, mas de ladrão de rebanhos. Não quer seguidores nem discípulos, embora traga aos homens um presente: seu próprio devir criança. “Não anda ele como um dançarino?”
Num de seus primeiros ensinamentos, Zaratustra nos fala sobre as três transformações do espírito, dentre as quais a criança é a última e a que requer de nós o maior esforço, por caminhar, justamente, na direção oposta a dos ideais transcendentes. A criança é a manifestação da pura imanência, ela dança e se compõe com o que se apresenta, deixando-se afetar e afetando tudo e todos aqueles com quem encontra pelo meio do caminho.
Apesar de estar disponível para nós, tudo indica que nos tornamos cegos e resistentes ao modo criança de existir, já que desde o nascimento, nos é inoculado o medo do presente e do desconhecido, ao qual a criança se relaciona com curiosidade e leveza. Eis o motivo pelo qual nós, humanos demasiado humanos, temos de percorrer uma longa jornada rumo ao devir criança: uma das maneiras mais autênticas de produzir nossa própria superação.
As três transformações do espírito falam de um certo destino dado às nossas forças vitais, de modo que, tão logo chegamos a este mundo, inocula-se em nós a ideia de falta. É aqui que nos tornamos animais de carga - burros ou camelos, diz Zaratustra - fortes e dóceis o bastante para carregar nas costas, e de bom grado, todo o peso produzido pela humanidade: as expectativas, as marcas de passado, os ideais, as culpas, os deveres e até mesmo aquilo que nos convém desejar. Tornamo-nos, nesse regime de assujeitamento de forças, tiranos e escravos de nós mesmos, acoplando nossos corpos e desejos a um script escrito de antemão.
Como animais de carga, ficamos felizes em cumprir nossa função de transportar nas costas o peso do mundo, não só porque nos sentimos úteis e pertencentes, mas porque aderimos rapidamente ao sistema de mando e obediência, de dívida e recompensa, presente nas sociedades orientadas pelo amor ao poder. É assim que nos colocamos a imaginar: nosso dia há de chegar!
Para aqueles que aguardam as premiações calcadas neste sistema de faltas, nenhum esforço terá sido em vão: quanto mais peso, maiores as promessas de benesses, se não hoje, talvez amanhã; se não nesta vida, quem sabe na próxima. Assim, enquanto os espíritos de carga dizem sim ao peso do mundo e os carregam de bom grado, também se fortalecem e se preparam para a grande recompensa. Não o fazem apenas por obediência: há um certo topo almejado, um desejo por altura e por ocupar um lugar de poder.
Eis que de tanto almejar e adiar sua satisfação, o espírito de carga, tal como um coelho a correr atrás da cenoura, se cansa e desaba sobre si mesmo. É quando encontra, na eterna miragem de futuro, um vasto e vazio deserto encarnado no próprio corpo. Não havia nada do lado de lá ou sequer havia um lado de lá.
É quando se encontra no desespero desta aridez, no mais ermo de todos os desertos, que ocorre a segunda transformação e o espírito torna-se leão. Só o leão será capaz de se assenhorar de seu próprio deserto e desprende-se, com fúria e coragem, de todos os deveres que teimam em inculcar-lhe no corpo e na alma. O leão já não obedece e, finalmente, passa a enunciar aquilo que deseja.
“Eu quero”, diz o leão, com a força necessária para dizer não à ordem que emana do outro. Ele diz não a todo tipo de assujeitamento que traga qualquer promessa de transcendência, e, assim, cria para si um território livre de estratificações. É ele quem empreende a tarefa de limpar o território, retirando dele cada marca de conservação, cada construção ideal que o impeça de se movimentar livremente. Será ele, o leão guerreiro, o animal predador que empreenderá um processo de destruição ativa, pondo abaixo cada uma das prisões que capturavam o desejo fazendo-o acreditar que necessita de um objeto externo para existir.
É só após a destruição ser levada a cabo pelo leão, que a inocência, o esquecimento e a leveza da criança encontram terreno fértil para emergir. Começa aí a terceira transformação do espírito, anunciada pelo devir criança como condição de superação da forma homem e de nossa retomada. A criança anuncia-se como uma disposição ao dizer sim. Dessa vez, porém, não se trata de um sim ao comando do outro, como fez o camelo, mas um sim à própria potência de criar e de fazer frente ao acontecimento. Só ela é capaz de afirmar as forças imanentes do acaso e a partir delas criar realidades.
Será a criança a dar passagem ao olhar curioso frente ao assombro da vida. Ela se espanta e desloca-se pela superfície lisa como quem dança, pois tem, diante de si, o privilégio da entrega e da produção do novo.
Na superfície do acontecimento, a criança brinca, mas não como quem faz de conta ou como quem representa algo da ordem do real. Seu brincar é, em si, o puro real e ao fazê-lo, também ela se faz presente diante da vida, colocando-se à sua altura. Puro corpo que dança ao ritmo do tempo e de sua duração, ela se compõe com o acontecimento enquanto canta e silencia, experimentando-o em sua totalidade.
Assim, nos ensina Nietzsche, sob as palavras de Zaratustra: para participar ativamente do jogo da criação é necessário um sagrado dizer sim diante da vida, um tipo de atrevimento inocente de que só as crianças são capazes. Ao que tudo indica, temos pela frente uma tarefa relativamente simples e, ao mesmo tempo, das mais complexas: dar passagem à criança que em cada um de nós quer emergir e criar existência.
Nada além de devirmos criança!
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