Usos do tempo: entre a queda e a passagem
- Marta Picchioni

- 9 de ago. de 2022
- 3 min de leitura
Hoje quero falar de Falling, filme dirigido por Viggo Mortensen e traduzido por aqui como Ainda há tempo. A narrativa começa dentro de um avião - tempo e geografia em suspenso, deixando em evidência uma pequena amostra da turbulenta relação vivida por Wills e John, pai e filho.

Como o título deixa antever, Falling trata não apenas da relação intempestiva entre os homens de diferentes gerações, mas também de nosso embate singular com a passagem do tempo, por meio de cenas que se alternam entre a infância e a juventude dos protagonistas e sua atualidade.
Chronos ou Kairós? Afinal, a passagem do tempo se apresenta inevitavelmente como queda ou como oportunidade?
A brincadeira com o título original e sua tradução para o português abre passagem para toda ambivalência da relação que estabelecemos com o tempo, pensado e vivido tanto em sua dimensão cronológica - aquela que delimita e separa claramente passado, presente e futuro - como na dimensão de uma temporalidade que coexiste numa mesma superfície, onde não cansa de se atualizar.
Trata-se das constantes negociações entre Chronos e Kairós, o tempo oportuno, pois ainda que o tempo não pare de passar, é justamente seu movimento que nos apresenta a cada dia, a possibilidade de vivê-lo sob uma perspectiva inédita.
Conhecemos nossos protagonistas, por meio dos flashes que entrecortam suas vidas, como se as fatias de um certo passado pudessem nos dar elementos para compreender as tensões da atualidade, onde o filho tornou-se alguém que encarna uma existência bem distante - talvez diametralmente oposta - das projeções paternas.
Se o filho ainda o é e sempre será, também é verdade que ele é sempre um outro, dissonante, e, na medida em que cresce, a grandiosidade do pai diminui. Já não há herói, nem pedestal possível de ser sustentado. O pai que vocifera, declina e se apequena, tornando-se uma figura ressentida diante das mudanças em curso, congelada nos regimes de verdade do que julga ser seu tempo.
E então temos os netos, a geração nascida e criada com a distância necessária para interromper a corrente dos desejos não cumpridos. Diante da figura do velho feroz, a presença livre de amarras dos netos, em especial da filha de John, revigora e dá graça ao ar parado, como uma fresta que permite a entrada de novos ventos.
A menina interage com humor e curiosidade diante das sandices do avô, abrindo a ele a possibilidade de experimentar outros afetos e modos de estar, já que não toma para si o peso de ter de corresponder às suas parcas visões de mundo. O riso é sempre um poderoso operador clínico e, na convivência entre diferentes gerações, as temporalidades também se entrelaçam, abrindo caminhos para que se produza diferença na existência.
Wills, no entanto, parece avesso a qualquer tipo de convite, preferindo habitar o lugar desértico de um passado dominado por marcas de abandono - já que nenhum de seus familiares abriu mão de seus desejos para caber em seus duros moldes. Restou-lhe, então, remoer frustrações e processar distâncias, a amargura de um tempo vivido como repetição.
O filme deixa claro: envelhecer por si só, não é garantia de sabedoria. Wills envelhece em algum lugar do passado, fixado em seus acontecidos, estático em um cenário qualquer enquanto o tempo e o vento seguem, apesar de tudo.
Eis aqui uma tarefa de vida: fazer do tempo um aliado e saber passar junto com ele, extraindo de cada encontro, uma boa ocasião para a produção de diferença na existência, fazendo da vida uma potência de acontecer.






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