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Você tem sede de quê?

  • Foto do escritor: Marta Picchioni
    Marta Picchioni
  • 24 de fev. de 2022
  • 3 min de leitura

Em última análise, amam-se os nossos desejos, e não seus objetos.

F. Nietzsche



No grande mercado a céu aberto que se tornou a vida na sociedade de consumo, fazer escolhas tornou-se imperativo. Mas será que sabemos daquilo que nos sacia?

Na longínqua década de 1980, os músicos do Titãs brincavam com a ideia de que o mundo tornava cada vez mais difícil a tarefa de diferenciar entre desejo e necessidade.



imagem: Tyler Spangler



Em um mundo em que os mercados se abriam, já não bastava saciar a sede ou a fome: investia-se na construção de uma certa especificidade do que e de como consumir. Criava-se a geração coca-cola.


De lá para cá, a projeção de nossos desejos sobre objetos de consumo só se intensificou. Precisamos de um celular da marca tal, necessitamos frequentar tal ou qual lugar, ler certos livros, consumir certo tipo de alimento ou, ao contrário, cancelá-los de nossa agenda.


Numa sociedade ávida pela produção de desejos e de necessidades, como diferenciar um do outro?


É aqui que tudo se complica, pois a rigor, esta é uma falsa questão, na medida em que os desejos são vontade de vida procurando um canal de efetuação e expressão. Necessários, portanto.


Talvez o que nos caiba, então, seja recolocar a questão, deslocando o foco da diferença entre desejo e necessidade para o reconhecimento do que seria um desejo necessário e outro, “comprado” nas prateleiras da vida pelo puro ímpeto de pertencer.

Isso porque, as engrenagens da maquinaria social rapidamente se apropriaram do modo como o desejo se auto fabrica, e entraram no jogo, passando a produzi-lo em escala e sob medida. Houve aqui um deslocamento, do desejo como centelha de vida, ao desejo acoplado a um objeto qualquer, a ser adquirido, possuído e, assim, saciado.


Da necessidade de um desejo em movimento ao consumo de objetos de desejo, uma sedentarização da vida que em pouco tempo se desintensifica.


É assim que, gradativamente, deixamos de experimentar as sensações produzidas pelo corpo, de fome e de sede, por exemplo, para nos preenchermos, rapidamente, de enlatados, processados e industrializados - a geração coca-cola. Tal relação com os modos de desejar pode ser transposta para qualquer campo da vida em que o ato de fabricar um desejo autêntico e necessário, cede lugar ao desejo empacotado, frequentemente entregue em domicílio e por aplicativo.


É justamente a associação do desejo com o ato contínuo de consumir objetos que nos separa de nossa vital necessidade de desejar em ato, uma manobra da linguagem e do pensamento que nos dociliza, já que com ela passamos a nos adaptar plenamente a uma maquinaria que não se cansa de produzir desejos substancializados.


É esta engrenagem que faz girar o mundo dos desejos capitalizados. Enquanto a cadeia produtiva se reproduz em escala exponencial, nós nos desvitalizamos, vampirizados e cúmplices da produção desejante em massa.


Aqui a questão se recoloca outra vez: já não se trata de discernir entre desejo e necessidade, mas de saber se de fato desejamos aquilo que pensamos desejar.


É assim que o consumo desenfreado já não se restringe somente à compra e posse de objetos, mas ao uso possessivo de pessoas e de relações, trocas tornadas utilitárias na medida em que nos inserimos no circuito dos desejos interesseiros, aderindo automaticamente a um querer orientado a objetos que em tese nos faltariam.


Logo descobriremos que quanto mais confundimos a produção desejante intensiva com o consumo de enlatados, mais cresce o buraco em nós, de uma fome tornada insaciável, quanto mais procuramos preenchê-la.


O que nos cabe então é respirar calmamente e liberar o corpo, para que seja possível retornar ao movimento. Voltar às sensações, à fome e à sede. Sentir seu incômodo para poder fabricar o alimento que as preencheria, entregando-se ao processo. A saciedade virá não do entupimento de cada um de nossos buracos, mas da necessidade de pôr o desejo em fluxo, como acontece com as águas de um rio.


Numa completa inversão da sentença, deixamos de compactuar com a lógica de posse de objetos, de modo que se torna impossível morrer de inanição. Aqui já não interessa consumir para saciar a sede, mas fazer com que pequenas gotas de água passem a brotar de nós e a nos fertilizar. A este modo de desejar, nada falta.



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© 2022 Marta Picchioni

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